sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Aquém quintal


Pela manhã o sol apareceu sem muitos problemas, é que por aqui sempre chove ao amanhecer, me forçando a ter mais resistência nessa base onde estou recostado –acredito que seja numa folha de roseira – essa folha se move bastante com o vento e, imobilizado, não posso mudar de posição. As dores pelo meu corpo são inevitáveis, parece-me que já não terei forças para aguentá-las. Por aqui tudo é muito verde e úmido, nós, criaturas imóveis (ou balançadas pelos ventos ou quando crianças e cachorros nos esbarram) estamos rodeados por um muro, fale-se daqui como um ‘quintal’, acredito que seja esse lugar de meias paisagens desnaturais. Bom, estou, sobretudo, vivo; passei a noite no frio escutando o estalar das pétalas do botão de rosa logo acima de mim. Além das dores da minha transformação, tenho de suportar a hora das crianças chegarem com cachorros pela manhã; o casal de cabelos brancos mora nessa construção de magnitude “João-de-barresca” – dize-se casa - e os berros infantis entram entre carreiras com direito a pisadas fortes e gritos agudos e alegremente cansativos.

A velha de vestido florido (sempre usa um vestido semelhante a este) está com uma mangueira, muitas vezes me lembra uma cobra que jorra água pela boca com o objetivo e aguar as plantas, molhar a terra sem o fervor do sol da tarde, sem a escaldância do sol da tarde, principalmente nessa manhã sem chuva, nessa manhã brilhante e barulhenta. As crianças se despedem dos pais, o motor do carro liga com os pais dentro e seu barulho se perde no mundo ‘além-quintal’. Ao molhar a paisagem naturalizada, a água me causa uma leve refrescância, um alívio que não costumo sentir se não for esta velha, nas manhãs como essa, a me acariciar com a dita mangueira d’água. Os cachorros correm atrás das crianças, todos alegremente batem na roseira e eu, (se for visto assusto a todos) tento me segurar, a vida deles se esvai.

Um cheiro surge da casa, cheiro de bolos crocantes - aprendi que eles o chamam de biscoitos - essas crocâncias vêm numa bandeja carregada pelo velho de suspensório, velho sempre sorridente; um avô que embola no chão entre bichos e netos, gramas e flores, sol e espinhos da minha roseira temporária. “Barre, Barre o quintal!” Ordena a avó para o velho brincalhão, as coisas tentam encontrar seu eixo; a calmaria da hora do almoço é chegada, e não chove... o sol escaldante da tarde também chega, minhas dores aumentam e me contorço, não sei o que faço aqui nem quanto tempo durarei aqui. O Sol se vai assim como chegou, mas, diferente de como vem, é alívio quando se vai; o frio da noite estala algo em mim, os berros viram sussurros e o motor começa a apitar novamente, desta vez para levar as crianças. Todos os dias se repetem como tal, nada difere. Hoje é que está tudo diferente, depois de um dia em  que não houve mais barulhos, nem nunca mais a mangueira da mão da velha jorrou água em mim, esse dia me causou estranhamento, num dia em que, ao invés do cheiro dos biscoitos crocantes, saiu da ‘casa João-de-barresca’ pessoas silenciosas, e caixotes grandes e emadeirados; agora chove todos os dias, mas não sou acariciado com a mesma refrescância e alívio da cobra d’água, ouvi dizer que eu criarei asas, independente da vida que se esvai no mundo “Aquém-quintal”.