Pela manhã o sol apareceu sem muitos problemas, é que por aqui
sempre chove ao amanhecer, me forçando a ter mais resistência nessa base onde
estou recostado –acredito que seja numa folha de roseira – essa folha se move
bastante com o vento e, imobilizado, não posso mudar de posição. As dores pelo
meu corpo são inevitáveis, parece-me que já não terei forças para aguentá-las.
Por aqui tudo é muito verde e úmido, nós, criaturas imóveis (ou balançadas
pelos ventos ou quando crianças e cachorros nos esbarram) estamos rodeados por
um muro, fale-se daqui como um ‘quintal’, acredito que seja esse lugar de meias
paisagens desnaturais. Bom, estou, sobretudo, vivo; passei a noite no frio
escutando o estalar das pétalas do botão de rosa logo acima de mim. Além das
dores da minha transformação, tenho de suportar a hora das crianças
chegarem com cachorros pela manhã; o casal de cabelos brancos mora nessa
construção de magnitude “João-de-barresca” – dize-se casa - e os berros infantis
entram entre carreiras com direito a pisadas fortes e gritos agudos e alegremente
cansativos.
A velha de vestido florido (sempre usa um
vestido semelhante a este) está com uma mangueira, muitas vezes me lembra uma
cobra que jorra água pela boca com o objetivo e aguar as plantas, molhar a
terra sem o fervor do sol da tarde, sem a escaldância do sol da tarde,
principalmente nessa manhã sem chuva, nessa manhã brilhante e barulhenta. As
crianças se despedem dos pais, o motor do carro liga com os pais dentro e seu
barulho se perde no mundo ‘além-quintal’. Ao molhar a paisagem naturalizada, a
água me causa uma leve refrescância, um alívio que não costumo sentir se não
for esta velha, nas manhãs como essa, a me acariciar com a dita mangueira
d’água. Os cachorros correm atrás das crianças, todos alegremente batem na
roseira e eu, (se for visto assusto a todos) tento me segurar, a vida deles se
esvai.
Um cheiro surge da casa, cheiro de bolos
crocantes - aprendi que eles o chamam de biscoitos - essas crocâncias vêm numa
bandeja carregada pelo velho de suspensório, velho sempre sorridente; um avô
que embola no chão entre bichos e netos, gramas e flores, sol e espinhos da
minha roseira temporária. “Barre, Barre o quintal!” Ordena a avó para o velho
brincalhão, as coisas tentam encontrar seu eixo; a calmaria da hora do almoço é
chegada, e não chove... o sol escaldante da tarde também chega, minhas dores
aumentam e me contorço, não sei o que faço aqui nem quanto tempo durarei aqui.
O Sol se vai assim como chegou, mas, diferente de como vem, é alívio quando se
vai; o frio da noite estala algo em mim, os berros viram sussurros e o motor começa
a apitar novamente, desta vez para levar as crianças. Todos os dias se repetem
como tal, nada difere. Hoje é que está tudo diferente, depois de um dia em que não houve mais barulhos, nem nunca mais a
mangueira da mão da velha jorrou água em mim, esse dia me causou estranhamento,
num dia em que, ao invés do cheiro dos biscoitos crocantes, saiu da ‘casa
João-de-barresca’ pessoas silenciosas, e caixotes grandes e emadeirados; agora
chove todos os dias, mas não sou acariciado com a mesma refrescância e alívio
da cobra d’água, ouvi dizer que eu criarei asas, independente da vida que se
esvai no mundo “Aquém-quintal”.